terça-feira, 5 de maio de 2009

Passaporte

"Quando você não pode olhar dentro da alma de alguém, tente ir embora e depois voltar"

Boris Pasternak

Eu não sei o quanto o escritor russo entendia do "partir". Talvez entendesse muito do "querer ficar". Pasternak foi perseguido pelas autoridades soviéticas nos anos 30; acusado de subjetivismo. Mesmo assim, conseguiu escapar de Gulag. Qual seria o meu destino da Rússia da década de 30, por Deus? Provavelmente passaria uma bela temporada na prisão com os companheiros que desagradaram Stalin.
O Fato é que mesmo que nós, Eu e Boris, não tenhamos nos encontrado nem no tempo nem no espaço (e muito menos na prisão), eu devo algumas coisas a ele. Começando pelo meu nome. Não o meu nome diretamente, mas o nome que foi da minha irmã, Lara, e que deu origem ao meu depois da sua morte.
Lara é a personagem do romance Doctor Zhivago, de Pasternak. Depois de transformado em filme na década de 60 virou febre entre as mães e deu a luz uma geração de muitas garotas homônimas da mocinha russa. Que era Larissa e Lara, como eu. Conclusão: sou quase a "Maria" da minha geração.
Depois do batismo, só fui encontrar com Bóris bem mais tarde, assistindo "Jornada da Alma". Em determinado momento do filme (sobre o qual não vou falar agora por render outro post) uma personagem pega um trem e tudo que ela deixa a seu “potencial” amado é um bilhete: "Quando você não pode olhar dentro da alma de alguém, tente ir embora e depois voltar".

Pois é. A partida pode ser também uma "escolha contragosto", ainda que uma escolha. Às vezes é assim por ser a única. Ás vezes pode ser só uma ilusão, bem verdade. De que adianta ir embora se o coração fica? E do que adianta voltar/ficar se seu coração ficou/se foi?
O outro pode ser um passaporte. O outro pode ser o motivo da travessia. Talvez por estar do outro lado da fronteira. Talvez por estar do mesmo lado e não querermos mais vê-lo. E quem sabe, porque não, por ser nós mesmos este outro. O que será que Moscou, por exemplo, teria a dizer sobre mim? O que será que os outros de Moscou teriam a me contar? E eu a eles? O que será que outro lugar teria a me dizer do outro que deixei aqui por não conseguir compreender completamente?

Talvez ir embora nunca vá te ajudar a olhar dentro da alma de alguém. Mas corremos um sério risco de nos depararmos com a nossa própria alma.

Vale arriscar?

Bóris Pasternak desenhou minha 5X7. Um outro carimbou meu passaporte com a vontade de ver o mundo e conversar com as pessoas. E eu o carimbo com a vontade de sonhar.
Com o passaporte em mãos estou pronta para ir. Ou voltar.

A questão continua sendo a mesma: Onde?


Ps¹: O passaporte acima pertence a Mathilde Lajta. A imagem foi retirada do filme Um Passaporte Húngaro da diretora brasileira Sandra Kogut (dirigiu também Mutum, um dos meus filmes prediletos). Como se constrói uma identidade? Os documentos, a memória, a família, um sobrenome, uma história, uma herança. O que é que significa hoje ser húngaro? E brasileiro? O que é uma nacionalidade? Ao contrário do que se pode imaginar, o resultado da procura da diretora torna-se secundário diante da riqueza do caminho percorrido por ela. Através do pedido de um passaporte, o documentário narra a história de uma família, conduzida pela relação entre a diretora e sua avó materna guiando o espectador em uma viagem de retorno às origens húngaras. Uma família que como muitas, foi dividida entre dois mundos e dois exílios: aquele dos que se foram e aquele dos que ficaram. Quem sabe no futuro eu não falo mais sobre esse documentário por aqui?


Ps²: Para os curiosos: Você sabia que o passaporte brasileiro é mais roubado e o mais caro no mercado negro? Quem acertar o motivo ganha um doce. :}